Minha abstinente conseguiu estabelecer uma rede de contato que poderia fornecer tanto sorvete quanto ela quisesse. Estava exaltada, porque o negócio com a sua fornecedora conseguiu estabelecer uma rede de abastecimento que a impressionou. Por isso, ela recebeu da fornecedora alguns excessos, alguns presentes, traduzidos por mais embalagens de sorvetes, prontas para saciar sua extrema vontade.

O dia da entrega estava cercado de expectativa. É claro que haveria alguns cuidados com a entrega, porque o isolamento teria de ser mantido. E o contato com o
entregador seria à distância, como nas outras entregas que eram colocadas no corredor.

Atendeu o interfone com alegria, já despossuída daquele olhar temerário que me obrigou a entrar e a sair, fique bem claro, do armário onde estava, ou pensava estar escondido.

O som das embalagens de sorvete no corredor ressonavam através da porta. No entanto, lembrei, ela deveria consultar o tempo de espera para poder se apossar da guloseima.

Consultou o Google e constatou que o sorvete não sofria essa restrição, porque estava embalado. Porém, antes que ela abrisse a porta eu lembrei, novamente, com um certo receio: a embalagem do sorvete é de plástico. Ela ficou estática, paralisada, fiquei preocupado com o olhar dela quando me encarasse. Ela consultou e percebeu que o plástico precisava de uma quarentena de 72 horas. E eu lembrei que o sorvete não resistiria a tanto.

Ela me olhou, com um olhar fundo e rancoroso, dizendo, em uma voz rouca, de dentro da alma, vamos dizer assim:

– Quem lhe perguntou isso?

– Eu não perguntei, apenas avisei…

Sua voz rouca rebombou pelo corredor, alertando minha vizinha, com a qual tínhamos um trato de ficar com a cópia da chave um do outro, no caso de alguma
assistência. Aliás, algo bem lembrado. E, ato incontinenti, ela, a vizinha, bateu em nossa porta perguntando se tudo estava bem.

Quando se ouviu a voz do filho da vizinha, alegremente, dizendo:

– Sorvete!

Ela, minha abstinente, por detrás da porta, alçou sua voz empoderada, respondendo:

– Nem se atreva moleque dos infernos!!!

O silêncio foi lúgubre. E logo depois, vimos surgir uma chave por debaixo da porta, como um sinal de paz.

Foram setenta e duas horas vendo minha abstinente vigiar pelo olho mágico da porta o seu sorvete derretendo, quando ela se voltou para mim, dizendo:

– Isso não vai ficar assim!

Gelei por dentro, perdoem-me a expressão, olhando para o banheiro de serviço com uma porta que, infelizmente, não tinha chave.

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