Eu e um dos peludos da casa temos uma coisa em comum: algumas vezes temos crises na coluna; ele na cervical e a minha na lombar. Por essas noites muito frias, algumas vezes, o peludo acorda no meio da noite chorando (sim, apesar de não ver as lágrimas, presumo que o som seja de lamento), porque dorme em uma posição desfavorável e ao se mexer tem a crise.

Acordamos e nada podemos fazer, a não ser tentar acalmá-lo. Lembro de todas as vezes em que a crise me coloca na cama, meu olhar percorre o ambiente e fico
imaginando quando poderei andar livremente pela casa. Quando estou bem, algumas vezes, nesse caminhar também me vejo deitado na cama enquanto nos aguardamos encontrar.

A expectativa é sempre grande, porque a próxima crise vai acontecer, e, portanto, é como viver entre dois espectros, como um ciclo, um aguardando o outro.
A diferença entre eu e o peludo, talvez, seja essa: a perspectiva de cada um de nós, diante da enfermidade. A minha é saber que ela vai acontecer e criar sempre
possibilidades para o seu não retorno. A dele não é aguardar a próxima, é imaginar que não vai mais acontecer. Depois da dor, ele vai, normalmente, pela casa, fazendo as mesmas coisas como se não houvesse amanhã. Ele, realmente, vai aproveitar o dia.

Nesses tempos de confinamento caseiro, o olhar da observação recai para os limites das paredes, algumas vezes até a varanda e tomar o sol. O peludo me mostra que a vida não pode ser sempre de lamentos, de expectativas negativas quanto ao futuro. Viver é aprender e apreender tudo à nossa volta. E o olhar
dele é de não lamentar o passado, a dor passou, não existe mais, foi apenas um contratempo que interrompeu o sono e a vida continua.

Nesses tempos bicudos, onde muitos estão em isolamento forçado, outros indo para as ruas usando as medidas de proteção recomendadas, na companhia forçada de alguns que fazem questão de mostrar uma total irresponsabilidade contra semelhantes e a si mesmo, temos que pensar que vai passar. E quando passar devemos seguir em frente. Da janela imaginar que estaremos naquele ponto distante, no futuro, olhando para os nossos lugares de reclusão e eles serão o passado.

Algumas vezes, quando estou em situação desconfortável, olho para um ponto distante e me imagino lá no futuro, revendo aquele passado e pensar que já foi, que a dor acabou e podemos seguir em frente.

Eu e o peludo nunca conversamos sobre o assunto. Mas, ao que parece, para estar vivo é preciso estar vivendo. Uma coisa de cada vez. O mundo vai seguir em frente, é importante estar vivo e não ficar se lamentando, para pegar, depois, a carona com ele.

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