Paladas de Alexandria disse que “Muita coisa acontece entre o cálice e o lábio”. Com esse pensamento a primeira coisa que me ocorreu foi o universo poético entre o cálice e o lábio: a chegada de um vidro fino, o toque, a vinda não de um copo, mas, de um cálice, que conserva na sua palavra algo doce, fino, elegante, e que pode transportar desde a bebida mais simples, ao amargo do veneno, ou ser o calar de uma boca.
Esse espaço pode ser o início da celebração de uma alegria, de uma vitória, de uma data, um evento qualquer que traga alegria àquele que vai
começar a beber. Pode também traduzir o infortúnio, a desgraça, o desafogo de esperanças, a perda de um amor, irremediavelmente. Pode ser o veneno que vai dar fim a uma vida inteira, repleta de desilusões para consigo mesma e parar com o mundo. A bebida e o cálice são do alcoólatra, do suicida, do refinado, sem distinção.
Esse espaço poético é grandioso e ao mesmo tempo assustador. Da sua imagem somente o contorno do cálice e a boca se abrindo para receber o seu líquido. Como uma dupla inseparável, pronta para lutar, ambos, pelo seu espaço na poesia. Ao cálice, a tarefa de erguer um brinde, de ser beijado pela boca seca e ardente do beberrão, do alpinista social, ou simplesmente de alguém de bem com a vida e mais nada a desejar deste mundo, confortavelmente sentado em frente a uma lareira, um alpendre, a deixar a imaginação viajar pelo nada.
Também este cálice esteve a serviço do Mestre. Envolto, simbolicamente, na atitude e na dúvida do Filho de Deus diante da missão a
ser cumprida. Em um último apelo Ele pede que aquele cálice se afaste da Sua boca e Ele possa evitar a Sua entrega em nome de outros, recusando-se a manter o Seu destino e, em determinado momento, se revoltar diante dele.
A Este lábio se juntou um cálice, um calar-se, como um grito de dor e de angústia, quando vivemos as duras penas de um regime militar, que o cantor eternizou em sua letra, pedindo ao mesmo Pai que Ele afastasse dali aquele medonho compromisso de lutar pela liberdade civil de muitos, de beber a bebida amarga do infortúnio.

 

Nilson Lattari
É carioca e atualmente morando em Juiz de Fora (MG). Escritor e blogueiro no site www.nilsonlattari.com.br e facebook/blogdonilsonlattari. Vencedor duas vezes no Prêmio UFF de Literatura 2011 e 2014 e Prêmio Darcy Ribeiro – Ribeirão Preto e, 2014. Finalista em livro de contos no Prêmio SESC de Literatura 2013 e em romance no Prêmio Rio de Literatura 2016. Menções honrosas em crônicas, contos e poesias. Foi operador
financeiro, mas lidar com números não é o mesmo que lidar com palavras. Ambos levam ao infinito, porém em veículos diferentes. As palavras, no entanto, são as únicas que podem se valer da imaginação para um universo inexato e sem explicação.

Sescdf2017 (2)

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